Parte 1: Curumim Canoa


POEMA
Todo mundo dormiu.
Psiu.
Não eu.
Estrela nenhuma noite afora.
Só céu.

No Natal,
as frutinhas do panetone
pisca-piscam estreladas,
lampadinhas noite adentro.

 2004

QUE SE TRANÇAVA NAS FOLHAS DO BOSQUE
Que se trançava nas folhas do bosque. Queria a menina olhar a névoa.
Longo branco vestido de algodão. Ruas descalças.
Velhas cascatas dos mares.
Queria as ondas ocultas, ainda que espuma à vista. Dissipasse.
Ruídos. Barulhos. Sonoros muares.
No caminho, pensando contradições. Ilusões. Lumiar.
Espalha a planície no vale. Espelho de águia.

2006
DIA LUZ
Céu cruzeiro estrelacadente.
De cadência em cadência,
transpássaroscendida.

Ainda hoje, o solsemente
desdobrando do fundo da terra-chão
e o léu cruzeiro alavancar a vida.
2006
INFÂNCIA
Querência das cores, que tinha. A venda da velha, a antiga farmácia...
quando era pequena.
Ruas enormes com cheiro de almoço.
Bandeiras. O Manuel Bandeira.
Depois o calor das palavras heróicas nos vales, quando era pequena.
Nas avenidas cinzentas e galpões em que o frio não assustava ninguém, não,
que febre era intensa.
Hoje algo se perde e ao mesmo tempo se cria.
Algo se finda, e ainda assim recomeça.
Algo envelhece e mesmo velho, renasce.
Enquanto eu pequena.
2006

PENTÂMERAS
Retomar delicado da bicicleta desfiando atalhos:
no céu, a semente ainda acesa.

2006
CHUVA
Presente de água
inunda meus pensamentos
desenha esferas tão longes.

Em cada dia a primeira vez.

Chuva, primeira vez.

Vento, primeira vez.
.
Meu canto,
primeiro descortinar dos pulmões

ao chegar a este mundo em que chove
e de tudo se faz uma festa, água radiosa no amanhecer.

Me refaço e deslumbro na realidade,
e o tudo que sinto me encanta.
E, se desabrocha uma flor em botão,
todo dia  existir plenamente.

O sol se atravessa no inseto,
as matas no capim miúdo,
silêncios.
2007

O TREM
Cheiro de café e pão francês com manteiga.
Almoço da vó.
Macarrão com sardinha.
Gelatina.
Bolo de sorvete de noite.
Dormir debaixo da árvore.
Pai Chico e Clarinha.
Abraçar a árvore.
Mexer com argila no rio.
Ver desenho de tarde.
Olhar.
Guaraná e bolo.
Bolo e guaraná.
Sorvete na chuva.
Piscina.
Mar.
Amar.
Travesseiro.
Sonho.
Andar sem sapato na grama.
Andar sem sapato.
Chupar manga com caroço.
Pintar os panos, o cabelo.
Sonhar com os amigos.
Prece.
Ler.
Escutar.
Sentir.
Ouvir.
Pipoca doce. Pipoca salgada.
Pipoca meio a meio.
Brinquedo consertado.
Cheiro de boneca nova quando se abre a caixa.
Lamber pasta de dente.
Amar.
Achar que não, e ver que sim.
Bombom.
Caixinha de bis.

Não quero hoje me ocupar com bombas,
nem com o petróleo,
nem com a crise econômica mundial.

2007
FLAUTA
Alegria,
o ouro do universo de expansão desmedida refloresce.
Visitas de bata e de flauta
dos amigos visíveis e dos discretos.
Voos brilhantes de uma vida.
Alegria,
o fim de cada chuva de começo.
2007

ESCRITOS
Passeando calada,
no ônibus,
ouço um barulho súbito, vem da janela.
Molho-me distraidamente de árvore.

Setembro de 2007

NANA, NENÉM
Preciso dormir e a poesia não me deixa.
Menina danada,
dorme o dia inteiro
e de madrugada
não deixa ninguém dormir.
Amanhã eu trabalho,
menina.
Vê se te aquieta,
tenta dormir, vai.
2009

IMAGENS
Lá se vai a caminhonete vermelha
carregando pela estrada crua a minha infância
e o beijo do primeiro namorado.

2010

CURIMIM CANOA
Brinca canoa nas águas, navega-canoa,
marinheiro que só me ensinou a remar.
Sem o barulho do mar, quem sereia nas águas, quem será?

Brinca canoa criança,
curumim moleque,
lembrança navega e deságua.
Ah, se eu fosse peixinho e soubesse nadar...

Voa, curumim-canoa.
Que o tempo não volta e o céu é tamanho.
Ciranda, cirandinha, voa.
Uma lágrima um trem que chega e se vai.
                                                                        
Quisera curimim ser estrelazul no céu
ou pedrazul no mar, quimera.


2010

RESPOSTA
Tia Valéria, da segunda série,
desculpe a demora em lhe retornar,
mas tava certo o meu caderno aquele dia:


DERREPENTE

ETECÉTERA

É que eu queria fazer poesia.

2010

IMPROVISO
Uma poesia novelinha da tarde,
flauta doce com um pouco de açúcar,
do tempo em que as moças tocavam piano e as avós faziam crochê
e as mães mexiam na argila do rio,
assim, assim.

Uma poesia do tempo em que as senhoras
usavam saias compridas
e liam josé de alencar.
Goiabada com queijo, bolinho de chuva,
assim, assim.

2010

VAGO, VAGO...
vago
nuvem

vago estado
vagão
trem
de ferro verde por onde passa vai chic-chic e se fumaça

2011

SERES
Para Rafaela

Duende, portal e cachorro-palito latindo gigante...
Dorme pequena, que a noite já vem.
Embaixo da cama se esconde

(ninguém fala nada que a noite já vem).

Fadinha de brilho nos olhos
e mãos poderosas de ACENDER colher.
Se nunca crescesse e nunca soubesse
o mistério de se tornar mulher...

Moleca princesa em missão no gramado,
descendo as escadas com lentes escuras
bem séria, bem firme, bem forte
à procura de um simples coelho qualquer.

Pinta de tinta os canteiros, paredes, a brisa.
Água de risos e gotas com baldes o imensomundo
habitado de gente crescida demais pra saber.

Pendura na noite comprida de estrelas
sua prece tão alta de acordar jesus
e adormece,
que o dia já vem.
2011

JARDIM
Flores tímidas e amarelas
persistem
feito as crianças da Luanda.
2011

POEMA AZUL
Afrescos no mural
azul elevado na areia: poemar.
Na mão direita tem
um olho transversal.
Na mão esquerda
tem um pé de flores
e um quintal.
2011

TEXTOS DE GRAVURAS
I – Rede de costura: fiação
Fios balançando na rede, e a rede pra lá e pra cá, sem pressa. No meio da folhagem age um debaixo de céu. Redondo e sem pressa. Fios de renda. A folhagem fresca cheirando de mato a brisa.

II – Peixe
Peixe que ainda será tinta. Peixe coral, peixe de cores. Bolinhas de gude no fundo do aquário, e o peixe branquinho, branquinho... Quando nada, o peixe reflete as cores, dissipa, expande, compõe.

III – Cenário translúcido
Transparentes e lúcidos alinhavos no espaço,
pregados no painel branco do cenário.
A orquestra toca linhas coloridas.

IV – Pipas
Pipas.
Villa-Lobos.
Vira lobo, lobisomem.
Pipas, vilas,
cantigas de voar.

Por fim:
Palavras feitas com giz de cera
pássaros
cansados do preto-branco na fonte 12 arial.

2011

CIDADES
Bem-que-te-vi, amado,
mas você voou simbora...
Na coleção dos asfaltos
a passarela dos guarda-chuvas se desenrolou.
No quintal -
Mangueira bananeira romã
sacudiram um beijo
que nem te alcançou,
nem
te
alcançou.
E você,
bem-mal-me-viu,
voou simbora...

2011

DESCOBERTAS
Revisito um apanhado de coisas miúdas que viviam guardadas
e eu nem lembrava que existiam:
uma caixa de fitas de cetim,
uma caderneta tamanho da palma da mão,
uma ideia,
bolinhas e contas azuis,
um pardal – há quanto não via um pardal... -

e uma sensação da intangível medida do tempo.

Julho de 2011

SEM TÍTULO
Pingente azul-coral guardado em uma caixinha de madeira,
no fim do encaracolado caminho para a alma.

Novembro de 2011

CRIANÇAS
Infância da Luanda. Infância do Egito. Infância do Oriente. São as águas de março fechando o verão. Infância do Quênia. Infância do Zaire. Infância do Afesganistão. É pau, é pedra, é o fim do caminho. Infância da Liberdade. Infância da seca. Infância da praça da Sé. A Lua gira em torno da Terra. A Terra gira em torno do sol.

Dezembro de 2011
CARACOL
Se eu tivesse um caracol,
me perderia acompanhando os caminhos do seu casco.
Se eu tivesse um caracol, talvez fosse mais feliz.
Acordava pela manhã, e ele deslizando o chão,
vazio de cogitações e projetos para o futuro.
Se eu tivesse um caracol, nem me lembrava de observar a Via Láctea
e nem comia as duas maçãs esquecidas sobre a mesa.
Pode ser que eu fosse mais feliz,
se eu tivesse um caracol.
Março de 2012


RUAS
Se essa chuva fosse minha, eu mandava ladrilhar.
Depois, costurava todas as estrelas
e te dava de presente.
Mas não é...
 Março de 2012

ME VI NOS DIAS DE ONTEM
Me vi nos dias de ontem, e quis trazer uma vitalidade amarela,
nem sempre a chuva que já não servia para nada –
como um sapato de número menor.
Me vi nos dias de antes, e o lago debaixo da chuva
ficou gelado e belo com pinceladas azuis.
Beijei o chão de terra e folhagens miúdas.

Abril de 2012

ENCONTRO
te vi sentado no passa-passa amontoado de pés vi teus olhinhos de capim.

Agosto de 2012
FLORESTA
Lagartinho passou e me deu um susto,
sussurrou o vento por debaixo do capim
e continuei mirando até onde ia a altura daquele coqueiro.
Por dentro da floresta, as brisas passam conjuntas na horizontal,
cochicham no ouvido da gente e o barro pisa os pés.
Uma cor transborda da flor pequena, porém,
e ocupa todos os espaços.                                
Setembro de 2012

MATERNIDADE
Não vai ganhá nada. Vai jantá a sua comida. Ela costuma ganhar tapioca pedacinho pedacinho num vai. num vai ganhar nada. Vai jantá a sua comida. Aí ela fica olhando olhando olhando. Êta minina!

Outubro de 2012





Nenhum comentário:

Postar um comentário

Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.