sábado, 22 de janeiro de 2022

 

Quinze para hora e o ônibus ainda não chegava hora nenhuma. Desertando, ela mirava o sol a pino, sacolas e bolsas atarefadas de afazeres. Entre os lampejos amarelos, imagens do tempo de menina quando não trabalhava nas casas. Quando no máximo o que tinha era bonecas de pano com olhos de botão e vestidos amarelo-vermelhos, potes encimados de sementes, alguns contados papeis, e ela rodopiava girando pelos quintais, poeiras de terra voavam sem-fim. Vem comer! Ela corria, mais as molecadas inúmeras, as bonecas de pano, os olhos de botão miravam as nuvens. Depois, as tardes infinitas, infinitíssimas... E hoje ela aqui. No atualmente. Dava a hora e nada dele vir. Onde andaria? Com seus longos cabelos compridos até o fundo do mar?

Não estava ruim na casa, não. Os povos eram bons e gentis. Havia comida, podia-se dormir com a tranquilidade das frestas das janelas, podia-se esticar os braços entre lacunas de histórias que ouvia durante o dia na sala, na cozinha, no quarto das crianças, no terraço. Faltava-lhe quase nada, a não ser um ponto de interrogação que lhe insistia na boca do estômago – desse, que tinha desde menina. Quando se cresce interrogada, toda estrada parece curva.

01/2022  

segunda-feira, 7 de setembro de 2020

Seca

O vento quente secou as pétalas

com o sol de gel embebido em álcool.

Máscaras expostas nos revelaram verdadeiras faces.

Aquilo que nós não fomos, quando sendo.

Uma nuvem singela, um botão de brisa, 

um futuro se tecendo todo novo colorido.



quinta-feira, 9 de abril de 2020

Cidades 2020


CIDADES 2020



Transparecendo reflexos da quarentena,
quase garimpo o melhor de mim e o pior.
Mescla-me aquarela, jasmim, piracema.
Baile de máscaras.
Um tanto brasil, outro tanto quinhão...
Olimpo e favela, oxalá, 
sem razão, sem neon, sem antenas.
Pássaros.

segunda-feira, 25 de novembro de 2019

Medida


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Segregado do ônibus, nau ilhada em si mesma,
a todos fazia festa e com muitos conversava.
Estava só.
Suas palavras rodopiaram giratórias no eco da rua
sem intensidade para chegar ao ouvido de quem passava,
e nem força para se manter entre os que esperavam o ônibus sair.
Tirou o metro da bolsa e disse:

- Vou medir quantos metros quadrados tem essa praça.

E acrescentou:

- Mas essa praça não é quadrada.

Nós é que somos quadrados, seu moço.
Sem curvas.
Só quinas, cantos e ângulos retos, seu moço.

2008

Paisagem de alaúde


PAISAGEM DE ALAÚDE

Fosse a madrugada um pássaro
a fremir asas sobre o telhado das casas.
O riacho é a véspera da maré.
E a lua fosse a dama prima
em seu véu de ambrósia e purpurina,
fosse a poesia mansa, cristalina,
a pena delicada, a menina.

Vamos nos atrasar, e u é?

De trás pra frente se faz memória,
memória boa de se lembrar.
Se na lembrança fosse tão cedo,
quase na hora de se jantar,
quase bem antes de namorar,
subir ao cume levasse à glória,
antes de nada viesse o medo,
eu bem pedia para dançar.

2003

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domingo, 24 de novembro de 2019


Como não saber do vento nos ares coloridos do mato,
enquanto me faço ato e movimento...
Como não sonhar equações e pensamentos,
como não encanto em todos os mares...

2019

domingo, 27 de setembro de 2015

Exercícios

Distante
Uma flor vermelha aponta por cima da cerca.

Olho para o céu.
Ali estão os pássaros.
Flor.

Trem distante que levasse meus pés distantes...
Deste preto-verde-cinza.
Em que meu coração.

Flor.

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          Quando
          Fios de rosa a revoar
          quando te miro nos olhos e me dizes tudo quanto não me dizes.
          Brumas cálidas, despétalas incandescentes,
          rosas e fios, rodas e espuma –
          um resumo enchuvarado quando te miro nos olhos
          e me dizes tudo quanto não me dizes.
          Fico um respiro no espaço,

          misto de flor, fogo, lilás e espuma.




segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

Quando

Quando

Fios de rosa a revoar
quando te miro nos olhos e me dizes tudo quanto não me dizes.
Brumas cálidas, despétalas incandescentes,
rosas e fios, rodas e espuma –
um resumo enchuvarado quando te miro nos olhos
e me dizes tudo quanto não me dizes.
Fico um respiro no espaço,

misto de flor, fogo, lilás e espuma.


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segunda-feira, 20 de outubro de 2014

EXERCÍCIOS


ESCRITOS
Passeando calada,
no ônibus,
ouço um barulho súbito, vem da janela.

Molho-me distraidamente de árvore.

POEMA AZUL
Afrescos no mural
azul elevado na areia: poemar.
Na mão direita tem
um olho transversal.
Na mão esquerda
tem um pé de flores
e um quintal.

CIDADES
Bem-que-te-vi florido
mas você voou simbora...
Na coleção dos asfaltos
a passarela dos guarda-chuvas se desenrolou.
No quintal -
Mangueira bananeira romã
sacudiram um beijo
que nem te alcançou,
nem
te
alcançou.
E você,
bem-mal-me-viu,
voou simbora...



domingo, 8 de dezembro de 2013

Conto: Secretária

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 Ela sabia que era. De modo que, enquanto lhe descia o almoço pelo avesso, o sorriso rompia os músculos endurecidos da face e lhe deitava um ar pueril, embora sem nenhuma verdade. Arroz feijão bolinho. A comida seca das crianças secas, distantes.
Mastigava os seus sessenta, setenta anos. Depois de ter subido-dinossauro as escadas largas, emergia dos protocolos, sentava-se maquinalmente. O que tornava a situação penosa era a tentativa de imprimir ao corpo um aspecto jovial, balançando de um lado para o outro os quadris engessados e os cabelos, desta maneira. Sua alma era uma infinidade de arquivos abertos e fechados.
Crianças pobres corriam no andar debaixo ou se esparramavam pelos colchonetes. Na sala dos professores, ela buscava a todo custo descolar aquela imagem grudada na pele, um couro fiscalizante, esforçando-se por demonstrar interesse pela leitura que a moça empreendia. Porém – trágica fatalidade! – não atingia a substância do texto. Uns conceitos saíram de sua boca como pedras. Contentou-se. Um alívio pôr-se à salvo daquelas palavras. Arroz feijão bolinho. Um gole de coca-cola e cada coisa tomou seu devido lugar.
Ela tentou olhar para o céu que se exibia detrás do vidro da janela. Em vão. Seus olhos estavam embaçados e sugavam com um sentimento de vitória cada objeto passível de ser avaliado. Ou de cometer erros. De longe, o coração batia devagar e denso. Respirou ofegante. Tentou ainda uma vez ser agradável, sentiu uma preguiça infinita de ser agradável. O que você está lendo? A voz soou professoral, caminhando por uma partitura torta no ar. um...l....livraqui.......... Balançou a cabeça e, no quase desespero, procurou novamente o céu, forçando as vistas através do vidro da janela. Sujeito. Sujeitar-se. Se levantou com uma tonelada em cada um dos seus oitenta quilos, o coração turvou. Desceu as escadas com pesar, formulou um começo de questão, desistiu. Deixou assim como estava. Ganhou a rua e pensou com carinho em um antigo amor, dos tempos de escola. Bobagem.                          

domingo, 6 de outubro de 2013

Conto: "Era sol"



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Era sol, quase o sol fininho acalentrando pela janela adentro. Pelo fiapo da janela.
Estantes de livros empoeirados embandeirando paredes. O sol por todos eles se esgueirava, espreguiçava, acendia-se de manhã, ele aceso. Passava gente na frente, cruzava a porta, ia-se embora. Também no telefone público. Passavam vozes, cruzavam linhas, costuravam-se as linhas, histórias, alinhavam-se amores, teciam-se sonhos, notícias, eventos. Lá dentro livros empoeirados e a mesinha. Sobre a mesinha, capas de antigos discos de vinil. No céu, disco do sol. E atrás da mesinha estava ele. O dono do pequeno sebo. O vendedor de livros. Miúdo, esguio, par de óculos adiante.
A que horas ontem dormi na pensão não sei. Faltou luz a água pingava chuva chão chuva chão. Sono não vinha, tinha jeito? Quando criança dormia. Colo de vó, outra coisa colo de vó.
Entrava alguém da rua, bolsa no ombro, queria romance, achava romance. Lia capa, contracapa, meditava no sim e no não de comprar o romance, tê-lo nos braços, envolver-se dia a dia, noite a noite, ser o romance, que escorria calçadafora, lado da bolsa. Um romance sempre deixa rastros. Lembro até hoje dalva bonita, dalva brilhante, dalva uma estrela no baile da festa, dalva todinha ela. Depois dalva indo embora e eu sumindo no mundo cachorro preto uivando no fim da madrugada que dava dó, dava dó. Não conheço mesmo esse tal de calabar que é que tem nesse tal de calabar. Já li, já reli, não acho começo nele.
Quanto era o livro de culinária? O dono do sebo tinha logo a resposta. Era a senhora de saia cinza. Para ela, desconto. Delicada, tão meiga. Cozinhava bem, trazia um pratinho, tinha trato com os temperos, dosava palavras, era muito refinada, sim. Novidade, reservava para ela. Vinha uma vez por semana, ia embora, obrigada. Seu troco. Obrigada.
Depois, o advogado, livros de história das civilizações, código penal e tal, tanto código nessa vida. Pra que servia tanto código se era mais fácil falar assim, solto...descia o cacete do alto e ele não pensava em código nenhum, queria ir pracasa, queria ir embora esquecer tudaquilo queria

descansar...descansar daquela salescura de lustre virando o avesso de tanto choque na vida e ele miúdo, ele esguio, ele nem vinte anos, o futuro na frente da cara esperando eu não conheço mesmo esse tal eu não estava na rua no dia na hora e digo nada, digo nada, adormecia. Sonhava com doce, com bolo, com vó e com vô.
O raio de sol invadia o sebo sem se envergonhar. Estendia-se, estirava-se. Entravam crianças. Comprar gibi. O menino de pé no solo comprar figurinhas pra recortar. Enfeitar o caderno, enfeitar. Hora do almoço, comida normal, tudo normal. Curta soneca de minutos. Entrava um, levava nada, entrava outro, levava nada...olá, tudo bom, vou indo, volto já, mais tarde passo aí, mês que vem, nem voltava.
O poeta era interessante. Queria poesia, queria teatro. Pra que ele lia aquilo. Não sei esse gregório de matos. Ele é bom? Não sei, já li, já reli. Esse vinil você conhece? O serviço público levou ontem um pasárgada um mário de andrade não sabia que você gostava.

- gosto

Senão tinha guardado. Agora, vem cá. Que é que você vê nesse guarnieri. Faz tempo que está aqui, eu não acho começo nele. Sabe se é peça, se é prosa? Como você sabe?

- a peça é assim, olha: vem indicando quem deve falar

Não entendo isso, você que conhece, já leu esse livro? Não entendo, não entendo, não vejo começo nesse ponto de partida.
O poeta ia embora, ensimesmado e pensativo. O dono do sebo. Como essas obras que só de vez em quando, uma pingando em cada ponto. Como estas estrelas que só se olhar bem. O dono do sebo.
Anoitecia, lua vagarinho olhando da ponta do azul meio escuro já. O vendedor levantava da mesa, baixava a porta, a chave fazia um barulho, escorria rua abaixo com dois pés, um após o outro, um indicando ao outro por



onde se deve andar. Devagar. Porta. No bar ao lado, um gole, um papo – pouco papo.
Depois o ônibus até lá em cima. Depois a rua da pensão. Calmamente. Os pés envelhecendo lentamente, firmes no chão. Pela cabeça, nuvens, o calabar, a cozinheira, misturados as crianças falando o direito civil penal num jardim. Lembrava do jardim, sentia debaixo do par de óculos a água que queria sair, mas não. Vento de chuva. O risco do relâmpago o rastro dalguma memória lembrança se boa, ruim, não sei, não entendo nada. Olhava para o céu. Infinito céu. Naquela noite, mais cheio de estrelas. Tantas estrelas. Uma estrela, um livro. Minha estrela dalva. Chegar na pensão, fechar os olhos, achar um começo na vida, infinito céu, achar um começo

2005