Estantes
de livros empoeirados embandeirando paredes. O sol por todos eles se
esgueirava, espreguiçava, acendia-se de manhã, ele aceso. Passava gente na
frente, cruzava a porta, ia-se embora. Também no telefone público. Passavam
vozes, cruzavam linhas, costuravam-se as linhas, histórias, alinhavam-se
amores, teciam-se sonhos, notícias, eventos. Lá dentro livros empoeirados e a
mesinha. Sobre a mesinha, capas de antigos discos de vinil. No céu, disco do
sol. E atrás da mesinha estava ele. O dono do pequeno sebo. O vendedor de
livros. Miúdo, esguio, par de óculos adiante.
A que
horas ontem dormi na pensão não sei. Faltou luz a água pingava chuva chão chuva
chão. Sono não vinha, tinha jeito? Quando criança dormia. Colo de vó, outra
coisa colo de vó.
Entrava
alguém da rua, bolsa no ombro, queria romance, achava romance. Lia capa,
contracapa, meditava no sim e no não de comprar o romance, tê-lo nos braços,
envolver-se dia a dia, noite a noite, ser o romance, que escorria calçadafora,
lado da bolsa. Um romance sempre deixa rastros. Lembro até hoje dalva bonita,
dalva brilhante, dalva uma estrela no baile da festa, dalva todinha ela. Depois
dalva indo embora e eu sumindo no mundo cachorro preto uivando no fim da
madrugada que dava dó, dava dó. Não conheço mesmo esse tal de calabar que é que
tem nesse tal de calabar. Já li, já reli, não acho começo nele.
Quanto
era o livro de culinária? O dono do sebo tinha logo a resposta. Era a senhora
de saia cinza. Para ela, desconto. Delicada, tão meiga. Cozinhava bem, trazia
um pratinho, tinha trato com os temperos, dosava palavras, era muito refinada,
sim. Novidade, reservava para ela. Vinha uma vez por semana, ia embora,
obrigada. Seu troco. Obrigada.
Depois,
o advogado, livros de história das civilizações, código penal e tal, tanto
código nessa vida. Pra que servia tanto código se era mais fácil falar assim,
solto...descia o cacete do alto e ele não pensava em código nenhum, queria ir
pracasa, queria ir embora esquecer tudaquilo queria
descansar...descansar
daquela salescura de lustre virando o avesso de tanto choque na vida e ele
miúdo, ele esguio, ele nem vinte anos, o futuro na frente da cara esperando eu
não conheço mesmo esse tal eu não estava na rua no dia na hora e digo nada,
digo nada, adormecia. Sonhava com doce, com bolo, com vó e com vô.
O raio
de sol invadia o sebo sem se envergonhar. Estendia-se, estirava-se. Entravam
crianças. Comprar gibi. O menino de pé no solo comprar figurinhas pra recortar.
Enfeitar o caderno, enfeitar. Hora do almoço, comida normal, tudo normal. Curta
soneca de minutos. Entrava um, levava nada, entrava outro, levava nada...olá,
tudo bom, vou indo, volto já, mais tarde passo aí, mês que vem, nem voltava.
O
poeta era interessante. Queria poesia, queria teatro. Pra que ele lia aquilo.
Não sei esse gregório de matos. Ele é bom? Não sei, já li, já reli. Esse vinil
você conhece? O serviço público levou ontem um pasárgada um mário de andrade
não sabia que você gostava.
-
gosto
Senão
tinha guardado. Agora, vem cá. Que é que você vê nesse guarnieri. Faz tempo que
está aqui, eu não acho começo nele. Sabe se é peça, se é prosa? Como você sabe?
- a
peça é assim, olha: vem indicando quem deve falar
Não
entendo isso, você que conhece, já leu esse livro? Não entendo, não entendo,
não vejo começo nesse ponto de partida.
O
poeta ia embora, ensimesmado e pensativo. O dono do sebo. Como essas obras que
só de vez em quando, uma pingando em cada ponto. Como estas estrelas que só se
olhar bem. O dono do sebo.
Anoitecia,
lua vagarinho olhando da ponta do azul meio escuro já. O vendedor levantava da
mesa, baixava a porta, a chave fazia um barulho, escorria rua abaixo com dois
pés, um após o outro, um indicando ao outro por
onde se deve andar.
Devagar. Porta. No bar ao lado, um gole, um papo – pouco papo.
Depois
o ônibus até lá em cima.
Depois a rua da pensão. Calmamente. Os pés envelhecendo
lentamente, firmes no chão. Pela cabeça, nuvens, o calabar, a cozinheira,
misturados as crianças falando o direito civil penal num jardim. Lembrava do
jardim, sentia debaixo do par de óculos a água que queria sair, mas não. Vento
de chuva. O risco do relâmpago o rastro dalguma memória lembrança se boa, ruim,
não sei, não entendo nada. Olhava para o céu. Infinito céu. Naquela noite, mais
cheio de estrelas. Tantas estrelas. Uma estrela, um livro. Minha estrela dalva.
Chegar na pensão, fechar os olhos, achar um começo na vida, infinito céu, achar
um começo
2005
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.